sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Conto - A Troca

Retirado do blog do pastor Joed Venturini: poesiasecontosevangelicos.blogspot.com

Um grupo de garotos passou correndo pela frente da porta, enquanto o velho Eurico a fechava para sair. Um deles praticamente esbarrou no ancião, mas Eurico parecia não perceber ou pelo menos não se incomodar. Era parte de sua maneira de reagir ao ambiente. E seu estilo poderia ser considerado perfeito. Fazia já 15 anos que vivia naquela favela e nunca fora assaltado! Ninguém o molestava. Vivia só e sossegado e era respeitado.


Saía pouco, pois era aposentado. Ia metodicamente à igreja evangélica mais próxima, mas tirando isso, e as saídas diárias à padaria e semanais ao supermercado, era ali mesmo, nas estreitas ruas da comunidade pobre, que fazia sua vida. O velho era conhecido como uma espécie de operador de milagres. Distribuía compaixão como o orvalho matinal e sua especialidade se é que se poderia chamar assim, era recuperar jovens desviados. E na sua favela havia muito material de trabalho.

O ancião tinha uma estratégia pouco comum. Poderia dizer que ganhava pela exaustão. Primeiro escolhia, em oração, um jovem que estivesse mesmo muito mal. Em geral eram delinqüentes envolvidos com o tráfico de drogas e membros de gangues da favela. Então iniciava uma maratona de jejum e oração por aquele jovem. Quanto sentia que tinha suficiente cobertura de oração, “atacava”. De tal forma procurava o seu alvo que ás vezes virava sua sombra. Em regra era rejeitado de início, mas ia ganhando terreno até que o jovem acabava ouvindo o homem.

Mesmo com meios tão arcaicos à psicologia moderna, o ancião tinha resultados surpreendentes. Podia citar uma lista respeitável de nomes de jovens que tinham deixado uma vida que levaria à uma morte prematura e que tinham sido recuperados ao ponto de se casarem, terem emprego e serem fiéis membros de igreja e até dois que eram pastores.

Mas Eurico não fazia propaganda de seu trabalho. Seria contrário ao seu estilo e personalidade. Além de mais ele considerava seu ministério como uma simples retribuição pelo que ele mesmo recebera. Fora, em tempos idos, um alcoólatra que estragara a vida e desgraçara a família. Teria morrido assim, se não fosse o amor paciente e perseverante de um antigo diácono da igreja onde agora assistia. Essa era sua história. Essa era sua vida.

Ultimamente, porém, o homem andava um tanto preocupado e nervoso. O caso que tomara parecia não se resolver como os anteriores. Estava já há meses orando, jejuando e lutando pela vida de Edmilson e parecia não haver nenhuma sensibilidade da parte do rapaz. A cada nova investida de Eurico o jovem se afundava mais em sua vida de pecado. Como chefe de uma facção da gangue tinha dinheiro e poder sobre outros jovens. Não se importava com nada a não ser usar e abusar de seu poder sobre os assustados moradores da favela. Passear de carro e trocar de namorada era outro de seus passatempos e, claro, tudo bem regado a chope e cocaína.

Eurico não era homem de desistir fácil. Não sentira ainda que fosse tempo de deixar de lutar pela vida e salvação de Edmilson e por isso mais uma vez após uma semana de intensa oração, ele se dirigia até o local aonde sabia que poderia encontrar o rapaz.

O jovem não estava em casa. Fora visto indo para o topo do morro aonde tinham uma casa que servia como uma espécie de prisão para inimigos capturados ou devedores que não pagavam suas remessas de droga. Era ali, no terraço, que costumavam executar aqueles que tinham atravessado o caminho dos líderes do pedaço. Eurico estremecera, mas não de medo. Estava seguro. Temia pelo seu alvo. Era pelo moço que sentia medo.

Subiu custosamente o morro, parando várias vezes. A idade já não facilitava. As 80 primaveras já tinham passado há alguns anos e os músculos não tinham a força de outrora. Perto do local que queria alcançar o ancião foi barrado por dois garotos armados, de uns 16 anos.

- E aí vovô, aonde é que pensa que vai?

- Vim ver o Edmilson (Explicou Eurico com toda a naturalidade).

- Manero (riu o outro garoto). Ó velho, cê num acha que tá velho demais pra andar cheirando?

Eurico baixou a cabeça cansada e levantando-a,  fitou o rapaz bem nos olhos de tal forma que o fez ficar sem jeito. Foi então que o outro notou a Bíblia na mão do velho e reagiu:

- Pode passar velho, vai logo!

Mais uma vez a superstição local se fazia sentir. Os traficantes, por regra, não se metiam com “crentes” porque diziam que dava azar. As evidências confirmavam. Eurico avançou até a casa. Era um casarão abandonado. Por todo o lado cheirava a dejetos humanos e havia ratos andando em plena luz do dia. Um despacho de macumba bem na entrada terminava de compor o quadro macabro.

O ancião não hesitou. Subiu as escadas gastas. Não havia ninguém no 1º andar nem no 2º. Ao chegar ao terraço já o velho arfava novamente. Parou e viu um jovem negro, alto, de soberbo aspecto, perto de um corpo que jazia no chão em meio a uma poça de sangue. Ao pressentir a presença do homem o jovem apontou a arma com ar furioso e olhos arregalados onde se evidenciava sinais da última dose de droga.

Eurico levantou a Bíblia em sinal de identificação. A arma foi baixada e os olhos do rapaz se encheram de impaciência e aborrecimento.

- Cê num me larga velho? Me deixa, pô! Tô cansado de te aturar! Vê se me esquece!

- Boa tarde, Edmilson! (o ancião respondeu em tom triste)

Um silêncio pesado se seguiu.

- Não posso desistir de você, Edmilson (continuou o ancião). Você está no meu coração. Quero ver você salvo e seguro nos braços de Jesus!

O Jovem riu com sarcasmo e balançou a cabeça.

- Os braços que eu quero são outros (gozou ele). Além do que, se você qué rezá aproveita e vê se ajuda esse aqui que precisa mais que eu (riu apontando o cadáver) Eu tenho mais que fazer.

Dizendo isso o rapaz passou pelo velho com desdém e o empurrou com violência. Eurico perdeu o equilíbrio e caiu sentado junto ao muro que circundava o terraço e o jovem se foi.

O ancião encolheu-se. Estaria errado desta vez? Seria Edmilson um caso realmente perdido? Na verdade o livre arbítrio era de se considerar. Ele não podia forçar a vontade de alguém a quem Deus fizera livre. No entanto o peso da alma do jovem o fazia sofrer e as lágrimas brotavam de seu rosto cansado. Ali ficou com a cabeça apoiada nos joelhos chorando e clamando por uma oportunidade de ser verdadeiramente intercessor, de ficar na brecha por este rapaz.

O tempo passou. Eurico não sabia se muito ou pouco. Quando se deu conta havia outra pessoa no terraço e o sol declinava rapidamente no horizonte. A presença dessa pessoa o fez erguer-se um tanto assustado. Limpou as lágrimas do rosto e o nariz que pingava e tentou se recompuser. Mas a aproximação da outra pessoa o deixou deveras surpreso.

Saída como que de uma espécie de névoa veio ao seu encontro uma velha de aspecto medonho. Curvada e cheia de reumatismo ela parecia não ter sequer um osso que não fosse deformado. Ergueu o rosto para Eurico e o fitou com superioridade. O ancião tremeu sem querer.

O rosto da velha era de tal forma enrugado e cheio de espinhas e pontos negros que só o fixá-lo já era penoso. O nariz de proporções significativas era peludo e torto. A boca irregular de lábios secos. Da cabeça quase careca saíam uns poucos fios de cabelo grisalho em total desalinho. A mulher trazia uma roupa toda negra e esfarrapada condizente com seu aspecto físico. Sua presença causava repulsa e medo, tremor e asco ao mesmo tempo.

Depois do primeiro susto Eurico tentou se recuperar. Pensou que fosse alguém da família do homem morto que permanecia no extremo do terraço e tentou ser gentil:

- Boa tarde, senhora. Veio pelo moço acidentado? (perguntou apontando o cadáver).

- Acidentado? (pronunciou a velha com sarcasmo).

Sua voz era metálica e grave. Um tanto inesperado. Causava arrepios na medula e parecia penetrar os ossos. Não parecia ser humana.

- Acidentado? (repetiu a velha)

- Bem (titubeou Eurico sem jeito). Eu, na verdade, não sei. Quando cheguei aqui já estava morto.

A velha parecia não estar interessada no que ele dizia. Aproximou-se do ancião e o rodeou examinando cada detalhe dele e em especial a Bíblia em sua mão. À sua aproximação Eurico experimentou um fenômeno de todo inusitado. O chão parecia ter se tornado frio. Como se a temperatura à volta da mulher fosse bem mais baixa que o resto do ar. A tal ponto se fez sentir isso que o pobre homem quase tremia de frio e segurava o queixo para que não batesse.

A velha tornou a se afastar dele sem palavras como se tivesse perdido o interesse e avançou até o parapeito da varanda examinando as redondezas. Eurico fez enorme esforço para sair de seu estado quase catatônico.

- Posso ajudá-la de alguma forma? (perguntou com educação)

A velha o mirou de novo com aquele olhar gelado e desdenhou:

- Não é você que quero! (respondeu secamente)

- Então, quem é? (insistiu o ancião já com seus pressentimentos)

A mulher parecia incomodada com a presença e a insistência do homem e pareceu atacá-lo. Voltando-se com rapidez surpreendente o questionou:

- Não tem medo de mim?

Desta vez foi Eurico que ficou firme e com olhar tranqüilo e seguro sorriu e respondeu:

- Deveria ter?

- A grande maioria dos homens tem… (disse a velha com segurança)

- Parece ter muita experiência! (refletiu Eurico)

- Alguma... (devolveu a outra com sarcasmo)

- E está procurando... (sugeriu o ancião)

- Edmilson (declarou a velha de forma seca e voltou a perscrutar a vizinhança).

Eurico ficou abalado com a revelação e se aproximou corajosamente da velha apesar de que o frio que ela transmitia ser a última coisa do mundo que queria experimentar de novo. De súbito, sentiu-se cheio de ousadia para lutar pelo jovem que pretendia ver salvo e pressentia que esta anciã só podia trazer más noticias. Chegou-se com convicção e disparou:

- Quem é a senhora?

A velha olhou Eurico com um misto de admiração e desprezo e sorriu. Um sorriso que faria gelar o coração do mais corajoso. De sua boca disforme se viam uns poucos dentes amarelo-acastanhados e a risada qual grito de hiena na noite africana parecia vindo de outro mundo. A mulher, olhando o homem no fundo dos olhos, pronunciou calmamente:

- Sou a Morte!

- Não pode levá-lo! (foi à reação imediata e quase impensada do ancião)

A morte mostrou surpresa franzindo o sobrolho que logo abriu em novo sorriso desdenhoso.

- Você vai me impedir?

- Não posso... (reconheceu Eurico) Mas ele não está pronto!

- Isso não é problema meu (deu de ombros a velha). Cumpro minhas obrigações e chegou à hora dele. Se não se preparou para me receber é problema seu.

- E meu também (protestou o homem). Eu assumi a responsabilidade por ele.

- Ninguém pode assumir a responsabilidade por outro (devolveu a morte). Cada um tem que me enfrentar sozinho e a hora de Edmilson é chegada.

- Então, me leve a mim (tentou Eurico já desesperado). Eu posso ir já, estou pronto. Não tenho medo de você. Leve-me no lugar dele!

Agora o homem parecia pela primeira vez ter conseguido a total atenção de sua interlocutora que o examinava com mais cuidado ainda. A morte aproximou-se novamente e o frio glaciar de ainda a pouco voltou a gelar Eurico de forma desagradável e quase insuportável. Tudo nele clamava por se ver livre dessa sensação, mas ficou quieto em seu interior lutando pela alma de seu protegido.

A morte percebeu a luta do homem e sua forte resolução e se afastou lentamente.

- Tem a certeza do que me propõe? (questionou tentando verificar a certeza do homem)

- Sim! (afirmou Eurico com total convicção)

- E porque faz isso? (quis saber a morte)

- Pela salvação dele. (explicou o ancião) Ele não está pronto para ir. Precisa de mais tempo. O amor de Deus há de vencer em sua vida, mas precisa de mais tempo.

- E é esse tempo que você quer comprar para ele? (sugeriu a velha rindo)

- Se for possível… (clamou ele)

- Possível é… (disse ela) Não seria a primeira vez. Tem-se feito muitas vezes e creio que ainda se farão muitas mais.

- E ele terá tempo suficiente? (quis saber o homem ansioso)

- Isso não pode saber. Só o Todo Poderoso sabe essas coisas. Pode ser que sim. Pode ser que não. Acha que vale a pena mesmo assim? Morrer sem ter a certeza? Pode ser em vão… (tentou a morte matreira)

- O amor nunca é em vão! (sentenciou Eurico) Estou disposto a dar a Edmilson mais uma oportunidade, nem que seja a última!

A morte balançou a cabeça e chegou-se ao fim do terraço aonde se via toda a favela. Suspirou com ar cansado e olhou mais uma vez com seus pequeninos olhos negros o homem que a observava em suspense.

- Tanto trabalho a fazer... Voltarei por você... Amanhã!


Antes que Eurico pudesse dizer qualquer coisa uma névoa vinda não se sabe de onde encobriu à velha e a sua figura fantasmagórica desapareceu.

O homem ficou muito tempo ali em pé sem saber bem o que se passara com ele. Fora sonho? Fora visão? Fora real? Como saber a verdade? O ancião sentia-se confuso. Seria genuíno que ele negociara com a morte e se oferecera para ir ao lugar de Edmilson? Isso seria possível? Seria aceito? No dia seguinte seria a sua vez? Estaria realmente tão preparado como se julgava?

Com esses pensamentos na cabeça ele deixou o local e à medida que descia do morro notava toda a agitação típica do fim de dia, mas algo mais do que era normal. Finalmente um jovem o informou. A polícia havia estado no morro durante a tarde. Tinha havido troca de tiros e Edmilson fora baleado. Estava no hospital.

Eurico estremeceu. Tinha que verificar. Sentia-se cansado. Na verdade exausto, mas não teria paz sem confirmar o que sucedera. . Questionou sobre o hospital em que o jovem estaria internado e foi até lá chegando já noite cerrada. Procurou o médico que atendera Edmilson. O clinico sentou com o ancião e parecia confuso.

- Foi algo muito estranho (disse o médico). O rapaz foi baleado três vezes no abdômen, na região do fígado. Chegou aqui com hemorragia interna incontrolável. Não havia nada que pudéssemos fazer. Nem se o tivéssemos recebido logo após os tiros. Mas tinham passado mais de 2 horas! Ele estava à morte! O pulso estava indo e todos nos preparávamos para deixá-lo cadáver quando, de repente, o sangue parou. O cara recuperou bem ali, à nossa frente. Olha, se eu não tivesse visto, não acreditaria. Se é que existe essa coisa de milagre, este foi um!

Eurico ouviu tudo com lágrimas nos olhos e sentindo que, afinal, tudo o que vivera fora verdade. Cheio de convicção e certeza conseguiu autorização e chegou à cabeceira do moço por quem se dispusera a morrer. O jovem orgulhoso e cheio de antipatia que ele vira no começo do dia já não estava ali. Edmilson tinha um ar assustado de garoto pobre que era o verdadeiro estado de sua alma. Olhou Eurico com vergonha e uma pitada de esperança. Tremia ao lhe contar.

- Foi uma emboscada. O meu pessoal me traiu. O desgraçado do Mendes queria a minha posição. Miserável! Vai pagar caro! (dizia com o rosto se contorcendo de dor e raiva)

- Ainda odiando? (interrompeu Eurico). Isso não te trouxe nada de bom.

O moço parou de falar e o olhou triste. Desta vez parecia reconhecer a verdade nas palavras do velho.

- Eu vi a morte! (disse então tremendo) E era horrível!

- Eu sei (balançou a cabeça o ancião). Mas não precisa ter medo dela agora. Você vai viver. Mas o quanto e como vai depender de onde você vai colocar o coração.

Na entrada do quarto uma enfermeira fez sinal ao ancião que era hora de se retirar. Edmilson segurou o braço dele com angústia. Em seus olhos de via agora todo o vazio de seu coração, toda a busca de sua alma.

- O que é que eu faço? (perguntou com voz embargada)

Eurico o olhou com carinho. Colocou sua Bíblia na cabeceira. Era a sua velha Bíblia. Companheira de tantos anos. Ganhara aquele livro do homem que o levara a Cristo. Era seu mais precioso tesouro. Mas sentia que agora o rapaz precisava mais dela do que ele. Sorriu de leve e acrescentou:

- Comece lendo o livro onde está marcado. Depois, quando sair daqui procure o pastor João da igreja lá da favela. Ele saberá te ajudar. Não desperdice seu tempo, meu filho! A vida é curta! Você não sabe o que vem amanhã.

- Você virá me visitar? (quis saber o moço)

- Não sei (respondeu o velho com o olhar perdido). Tenho amanhã um compromisso muito importante. Logo você saberá.

Com uma breve oração ele se despediu do moço e saiu. Trazia o coração em paz. Sentia que aquele jovem estava a caminho da recuperação. Seria difícil o caminho e muito espinhoso. As tentações seriam múltiplas e a luta tremenda. Mas ele queria acreditar. Era tudo que precisava. Fizera a sua parte. Talvez até demais. E com esse pensamento enchendo sua mente chegou a casa finalmente e dormiu um sono pesado, sem sobressaltos, cheio de paz.

No dia seguinte,  levantou-se à hora habitual. Fez tudo como em qualquer outro dia. Por que seria diferente? Foi o que pensou. O dia inteiro, porém, esperava sentir aquela presença gelada que o envolvera no dia anterior e que certamente o viria buscar. Mas nada aconteceu de manhã e a tarde ia já avançada quando se sentou em seu sofá de leitura e adormeceu com um velho livro de poesia no colo.

Acordou com uma sensação estranha e imediatamente sentiu que não estava só. Um arrepio percorreu sua espinha, mas recuperou depressa e levantando-se deu de cara com uma moça que sentada á mesa da sala preparava um chá.

Era jovem e extremamente bela. Alta e esbelta, de feições finas, rosto pequeno emoldurado por abundante cabelo castanho claro, olhos enormes de um verde enigmático, lábios bem desenhados e um queixo artístico. Era branca, muito branca e dela parecia emanar um perfume doce inebriante que o ancião sentiu ser delicioso demais.

Eurico sorriu diante de tal visão e limpando a garganta se desculpou:

- Peço desculpa não a vi entrar, estava lendo e creio que cochilei.

- Não tem problema, eu tenho tempo.(ela respondeu numa voz maviosa e musical)

E as palavras foram acompanhadas de um sorriso que trazia a beleza sombria de uma noite de luar. Eurico não pode evitar um novo arrepio, mas não sabia como reagir.

- Em que posso servi-la? (quis saber sempre educado)

- Temos encontro marcado. (lembrou a moça com certo ar de surpresa no rosto) Certamente não esqueceu!

O ancião recuou um passo e parou. Estava confuso e admirado. Balançou a cabeça e fixou melhor o olhar.

- Tenho encontro marcado com a... (não foi capaz de dizê-lo)

- Comigo! (completou a moça)

- Não pode ser! (continuou estranhando o velho)

- Porque não? (insistiu ela)

- Não foi você que vi ontem!

- Ah! (riu ela e se aproximou estendendo a xícara de chá fumegante e cheiroso)

À sua aproximação ele sentiu o frio que lhe percorrera o corpo no dia anterior. Mas este não era o mesmo tipo de frio. Não gelava. Não fazia tremer. Era mais um tipo refrescante, qual brisa gostosa em tarde abafada.

A moça fez sinal e ele tornou a sentar-se no sofá. Ela foi postar-se não muito longe bem em frente dele.

- Na verdade foi comigo que falou ontem (continuou a morte). Mas ontem você me viu como Edmilson me veria. Ontem eu era a morte aos olhos dele. Hoje estou diferente, ou talvez não. Na verdade não mudo. O que muda é a maneira como as pessoas me vêm.

Eurico abanou a cabeça. Fazia sentido. Era mesmo bastante lógico. Sorriu. Não podia evitá-lo. Como temer uma morte com esta cara?

- Está preparado?

- Sim! (disse prontamente o homem sem hesitar) E Edmilson?

- Terá sua oportunidade.

- E será suficiente? (insistiu ele)

- Só o Todo Poderoso sabe! (decretou ela) Tome seu chá. Você já fez sua parte.

Novo sorriso encheu o ar de parte a parte. Ele bebeu o chá e encostou a cabeça na poltrona. Fechou os olhos sentido o perfume que enchia o ar. Logo estava dormindo.

No outro dia de manhã corria a noticia na favela. O velho Eurico morrera na tarde anterior enquanto dormia e o barbeiro que costumava cortar-lhe o cabelo comentava:

- Isso é que é uma Bela Morte!

Baseado em João 15:13



“Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em favor de seus amigos"
 
Retirado do blog do pastor Joed Venturini: poesiasecontosevangelicos.blogspot.com 

Nenhum comentário: